Ao culto a Nossa Senhora dos Milagres anda associada uma interessante lenda, supondo-se constituir uma das
razões — porventura a principal — do abandono, em Cernache, do culto à
sua padroeira.
A mais antiga escultura existente na Igreja de Cernache é a de Nossa Senhora dos Milagres .
Ocupa o altar colateral esquerdo. Trata-se de um trabalho em pedra de
Ançã, do século XIV, sobre o qual Frei Agostinho de Santa Mana escreveu
no seu Santuário Mariano com o título Da milagrosa Imagem de nossa Senhora dos Milagres, da Vila de Sernache:
“O
Altar collateral da parte do Evangelho he dedicado à Mãy de Deos com o
título dos Milagres, aonde em hu grande & rico tabernaculo com sua
tribuna, se vê collocada a miraculosa Imagem da Senhora em hum
levantado trono. He esta sagrada Imagem de escultura formada de pedra
de ançãa & para mayor veneraçaõ a tem cuberta de roupas com rico
manto, & as Suas devotas, que a vaõ vestir lhe põem muytas fitas,
que pelo pouco alinho com que estaõ postas, o julgáraõ muytos por
adorno bem escusado; porque nas Imagens da Mãy de Deos, saõ escusadas
estas fitarias tão mal acomodadas e sem concerto. Tem esta sagrada
Imagem cinco palmos de estatura, & sobre o braço esquerdo ao Menino
Deos, também adornado de roupas, & ambas as Imagens tem coroas de
prata douradas, grandes, & bem lavradas. E assim a Senhora como o
soberano Menino são de rara fermosura: poem à Senhora tambem toalha,
& com ella se parece muyto com a Senhora da Penha de França de
Lisboa; & assim me pareceo quando fuy a veneralla em aquella
Igreja.
Da origem desta sagrada Imagem
se não sabe nada por escrituras authenticas, nem por memórias escritas,
só por tradições consta, que milagrosamente viera ‘aquelia Igreja. Diz
a tradiçaõ, que esta Imagem viera das partes de Lisboa; & que hia
sobre hua mula para Coimbra, & que a mula se encaminhára para a
Igreja, & que nefla parára, & que por mais diligencias, que se
fizerão, a não pudérão mover, a que desse mais hum passo. À vista deste
grande milagre tratáraõ de coliocar a Senhora em aquella Igreja, que se
entendeo ella buscava. Por esta maravilha se lhe impoz o título dos
Millagres; porque se lhe não soube outro. Isto he o que a tradiçaõ
affirma.”
in livro de Nossa Senhora dos Milagres do autor Bráulio Baptista”
* Quadro de Autoria de Abel Santos |
“ Extraído da Monografia Histórica de Cernache do Autor Henrique Matheus dos Santos ”
Na
egreja de Cernachee ha uma imagem, que tem n'um dos braços, ao collo, o
menino de Deus, muito per feita e de rara formosura, que representa
Santa Maria, sob a invocação de Nossa Senhora da Assumpção orago da
freguezia, no culto que se lhe presta sob a invocacão de Nossa Senhora
dos Milagres. Essa imagem, segundo reza a tradicção e nos é
transmittida por Fr. Agostinho de Santa Maria, deu entrada
milagrosamente naquella egreja, pois que vindo das partes de Lisboa em
uma mula para Coimbra, a mulla se encaminhou para a egreja e junto
d'ella parou, nau se conseguindo. por mais diligencias que se fizeram,
que desse mais um passo
À vista deste
milagre, e a pedido do povo “ a imagem deu entrada na egreja que se
entendeu ella buscava” e ahi, na parede do arco cruzeiro da capella
mor, lado esquerdo. se mandou construir um altar com seu levantado
throno para n'eIle ser collocada, como de facto o foi.
O
povo, sempre imaginoso, pinta em seus ingenuos cantares, e com alegres
cores, a apparicão de Nossa Senhora dos Milagres, e cuida, confiado em
sua não desmentida crença. que ella, como mãe carinhosa e desvelada,
nunca lhe faltará todas as vezes que lhe dirija com sincera e
verdadeira devoção.
Analvsando esta
lenda julgamos bem interpretal-a, e achar-lhe o seu verdadeiro
significado, dizendo que a imagem de Nossa Senhora dos Milagres e a do
menino de Deus foram feitas em Coimbra por encommenda do padroeiro
leigo da egreja, que por esse tempo vivia em Lisboa, devendo por esta
razão ter sahido d'esta para aquella cidade o dinheiro ou ordem de
pagamento das esculpturas, e estas de Coimbra para Cernache, a cuja
egreja decerto ellas se destinavam.
A
pedra de Ançã de que as imagens são feitas, a proximidade d'aquele
logar, cerca de dez kilometros ao norte de Coimbra, a excellencia da
factura das esculpturas, que os artistas da mesma cidade podiam sobre
todos os outros do paiz executar a primor, por ter sido em Coimbra no
seculo XVI, onde essa arte attingiu a maior perfeicão, justificam o
nosso parecer. Por esta epocha, 1583, data que encima a capella de
Nossa Senhora dos Milagres, o padroeiro secular era representado por D.
Isabel da Silva, filha de D. João d'Athavde, á qual se deve, é de
suppor, o altar de Nossa Senhora dos Milagres e competentes imagens: e
a D. João Goncalves d'Athavde, 4.° Conde d'Athouguia, homem rico, se
deve a ampliação da egreja em cujo frontespicio se via a data de 1594,
epocha do seu acabamento
O 4.º titulo de
Conde d'Athouguia foi concedido em 1588, por ter fallecido sem filhos,
em 1581, o 3.° conde do mesmo titulo, D. Luiz d'Athavde, vice-rei da
Índia.
Quanto ao culto de Nossa Senhora,
mãe de Deus, sob a invocação de Nossa Senhora dos Milagres, é elIe
muito antigo. e tanto assim, que em 08 de Outubro de 1721, o escrivão
da Camara de Cernache, Christovão Camello Leitão, que não desconhecia a
data que encinlava a capella de Nossa Senhora e a do frontespicio da
egreja. Dizia; “que do anno da instituição da confraria de Nossa
Senhora dos Milagres não havia memoria, constando porem da Bulla do
Papa Paulo V, de 15 de fevereiro do anno de 1607, ser unida á
Archiconfraria de S. Jeronvmo da cidade de Roma”.
Em
presença d'estes (actos de presumir que a ins tituição da irmandade de
Nossa Senhora dos Milagres seja bastante anterior a 1583 e por ventura
quasi coeva da factura da primitiva egreja, em que a fé estava viva e
os milagres de Santa Maria se repetiam, passando-se por este motivo, e
desde logo, a celebrar o culto de Santa Maria sob duas invocações, uma
a de Maria Santíssima, mãe de Deus, debaixo do titulo de sua
triumphante Assumpção e outra, a de Nossa Senhora dos Milagres. que a
nova imagem veiu definitivamente consagrar, separando-se assim os dois
cultos em conformidade com as respectivas imagens.
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Cumprehendida pelo modo que expusemos a apparição de Nossa Senhora dos
Milagres, o episodio não passa d'urn facto natural, mas a poesia
religiosa, que o povo teceu em volta da formosa imagem, perde a graça.
o encanto, o frescor das almas simples. sendo preferivel talvez que nós
o tivessemos deixado ticar na “ pureza; antiga” repetindo-lhe com o
poeta : — que” n'ella durma ….sonhe. . . . e não acorde mais!....”.
* Quadro de Autoria de Abel Santos |